Ação sindical e uso da tecnologia da informação

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Numa quarta-feira, primeiro de julho de 2020, milhares de entregadores “empregados” pelas empresas que controlam aplicativos, como Rappi, I-Food, Uber Eats e similares, fizeram greve no Brasil todo. O movimento culminou com manifestações massivas em São Paulo (SP) Campinas (SP), Santo André (SP) e Ribeirão Preto (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Salvador (BA), Maceió (AL), Fortaleza (CE), Teresina (PI) Brasília (DF) e Belo Horizonte (MG).

Ação sindical e uso da tecnologia da informação

O que aconteceu exatamente? Os entregadores se organizaram ao longo do mês anterior para preparar a greve; se mobilizaram, pediram apoio e solidariedade aos clientes dos aplicativos, paralisaram as atividades, fizeram manifestações de rua, deram ampla publicidade às suas reivindicações ganhando assim a simpatia e a cumplicidade da opinião pública, e, por fim, marcaram nova paralisação para o final do mês.

Trata-se de uma atividade de natureza essencialmente sindical – mas organizada à margem das entidades.(1) Um setor da classe trabalhadora, produto direto da precarização imposta em nível mundial pelo capital e materializada no Brasil pelas reformas trabalhistas de Temer e Bolsonaro, se une e se organiza em defesa de suas reivindicações. Assim, uma massa disforme e pouco visível de “empreendedores” torna-se uma categoria de trabalhadores com voz ativa. As reivindicações não foram atendidas, porém a relação de forças mudou e algumas decisões judiciais já estão favorecendo os trabalhadores.

Como isso foi possível? Como “empreendedores” dispersos fisicamente conseguiram criar esse fato político? Com disposição de combate sem a qual não existe atividade sindical. Mas, quais foram os meios que possibilitaram mobilizar trabalhadores que pouco se consideram parte de uma categoria e ao mesmo tempo unificar pautas de reivindicações, planejar ações e dialogar com a opinião pública? Com o amplo uso da tecnologia da informação!

Os trabalhadores se utilizaram da internet e das ferramentas nela hospedadas, que foram desde aplicativos de mensagens, passando pelas redes sociais e conferências, chegando aos vídeos de propaganda. Todo esse arsenal foi mobilizado com inteligência, possibilitando a paralisação.

Esse fato precisa ser entendido pelo movimento sindical por seu profundo significado tanto político como organizacional: trata-se do uso da tecnologia.  A mesma tecnologia que tornou possível a precarização e a super exploração de uma categoria de trabalhadores pode ser um poderoso instrumento de ação sindical, se utilizada com inteligência e com propósitos políticos adequados.

Nas décadas de 1970 e 1980 do século passado, o movimento sindical brasileiro começou a se reorganizar contra o arrocho imposto pela política econômica da época – Ditadura Militar – e os trabalhadores passaram a retomar o controle de suas entidades expulsando os dirigentes considerados “pelegos”.(2) Nesse movimento os bancários tiveram um papel de destaque, principalmente em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e em Porto Alegre. A categoria era extremamente numerosa e concentrada. A quase totalidade dos bancários trabalhava em agências; as maiores agências, próximas entre si, ficavam nos
centros de negócios das grandes cidades. Os demais bancários trabalhavam nos Centros de Processamento de Dados (CPDs) e nos Centros Operacionais responsáveis pelas atividades de retaguarda, como, por exemplo, o Setor de Compensação. Com um único carro de som ou uma única equipe de panfletagem era possível ter acesso a uma grande parte da categoria. Essa situação favoreceu o desenvolvimento de um sindicalismo “clássico” que tomava emprestado os meios de luta e organização do movimento operário: assembleias massivas, passeatas, panfletagens, piquetes e greves.

Sabemos da significativa mudança do trabalho bancário nos últimos 40 anos, nos quais a categoria foi numericamente reduzida a uma fração do que era. A atividade foi fragmentada e hoje boa parte das operações é executada pelos próprios clientes nos terminais e aplicativos. Os processos de terceirização e precarização agravaram a fragmentação da categoria. Se a necessidade da ação sindical continua existindo, os meios devem mudar, e o movimento dos empregados dos aplicativos pode indicar o caminho.

As redes sociais podem servir de espaço de mobilização, informação e debate, reduzindo dessa forma a dispersão física e substituindo a reunião ou assembleia tradicional. As aplicações de mensagens assumem a função da “rádio peão”; decisões podem ser tomadas em rápidas videoconferências; e, por fim, plataformas de publicação de vídeo são instrumentos poderosos de esclarecimento e propaganda. Esses instrumentos – que, lembremos, são meios e não substituem a vontade e o rumo político – possibilitam o que o técnico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), João Guilherme Vargas
Netto, chama, em artigo publicado na internet em novembro de 2018, de “renascimento dos sindicatos”.(3)

Não se trata de fenômeno totalmente novo. Assim foi organizada em maio de 2018 a histórica paralisação nacional dos caminhoneiros que pôs de joelhos e por pouco não derrubou o governo Temer. Sem o uso da tecnologia teria sido impossível organizar, orientar, informar e mobilizar categoria tão dispersa, heterogênea e sem tradição de luta sindical. Mais recentemente as campanhas salariais de sindicatos tradicionais como o Sindicato dos Professores de São Paulo (SINPRO-SP) também se apoiaram fortemente em ferramentas tecnológicas.

Esse fenômeno não está circunscrito ao Brasil. Nos Estados Unidos, na década de 2010, verificou-se um renascimento sindical (4) impulsionado pelos millenials (jovens adultos, assim são chamados os nascidos entre a década de 1980 e os primeiros anos do século XXI). Esses jovens foram excluídos do suposto boom econômico que concentrou as riquezas nas mãos de um grupo cada vez menor e mais rico. Não têm perspectiva no curto prazo, nem educação política “tradicional”. Mas se lançam à luta ignorando o passado das entidades. Esse renascimento sindical tem a marca da tecnologia.

Os sindicatos já estruturados, como “os bancários”, devem também se utilizar dessas ferramentas (tecnologias). Mas não se trata de “espontaneísmo”. Para que sejam úteis, com benefícios perenes, é necessário adotar uma boa infraestrutura tecnológica: ferramentas bem escolhidas e treinamento adequado às pessoas envolvidas na utilização. Tudo isso aliado a serviços que aproximem o sindicato do trabalhador. Por exemplo: carteirinha virtual, consulta a processo trabalhista, solicitação de benefício, cursos de formação, estadia em colônia de férias etc.

Esses recursos compõem o que chamamos de segunda geração da informatização das entidades sindicais, ou de “sindicato virtual”. São dependentes da internet e da conectividade. Visam alcançar, dialogar e dar voz ao trabalhador independente de seu local de trabalho. A primeira geração “da informatização” foi impulsionada, no Brasil, pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) a partir do final da década de 1980. Hoje, a maioria dos sindicatos dispõe de sistemas que visam controlar seus processos internos: cadastro de associados, arrecadação de mensalidades, assessoria jurídica, controle de finanças, cursos, convênios e outros. Tais ferramentas são oferecidas por diversas empresas. Mas, mesmo com investimentos significativos, por parte dos sindicatos, em sua implantação, nem sempre há condições suficientes, diminuindo o potencial de aproveitamento dos sistemas. Isso se deve a múltiplas razões: infraestrutura insuficiente, falta de continuidade entre gestões, falta de formação e treinamento de funcionários.

Considerações finais

Tanto os sistemas mais recentes, de “segunda geração”, como os mais antigos, da “primeira”, só conseguem cumprir a função que em última instância é facilitar a ação sindical, quando sua adoção e implantação forem de fato assumidos como tarefa pela direção da entidade, tornando-se objeto de rigoroso planejamento. Sem isso, o risco de frustração, desperdício e subutilização das ferramentas é grande.

Por fim, não podemos nos esquecer do principal benefício da tecnologia bem empregada: a democracia e a plena participação da categoria nas decisões de sua entidade. Embora o confinamento, causado pela pandemia da COVID-19, tenha nos atualizado (pelo menos parte das pessoas) no uso da tecnologia, não se trata de assunto novo. Com as ferramentas da internet é possível, atualmente, realizar de modo virtual congressos, assembleias e plenárias. Há diversas soluções (pagas e gratuitas) de videoconferência e de webinar (videoconferência controlada e moderada) com as quais essas reuniões podem ser feitas com ampla e satisfatória participação. Algumas dessas reuniões tiveram a participação de milhares de trabalhadores, o que seria muito difícil de acontecer presencialmente, ainda mais em tempo de quarentena.

Quando pensamos em democracia, pensamos em voto. No curso das assembleias e congressos é possível organizar as votações com toda segurança e proteção de confidencialidade. As votações podem ocorrer concomitantes às reuniões ou em separado, apenas como uma consulta à categoria. Recentemente vários acordos celebrados entre sindicatos e empresas – principalmente relativos a questões de redução de jornadas – foram assim votados, com grande participação dos trabalhadores. Estes acordos têm legitimidade.

Mesmo as eleições para renovação da diretoria podem ser feitas virtualmente. Todos conhecem a complicada e onerosa logística de roteiro de urna, votação na sede e nas subsedes, transporte de urnas, fiscalização e apuração de uma eleição tradicional, ainda mais em categorias geograficamente espalhadas. O mesmo pleito, se virtual, além de possuir uma segurança igual ou até maior que a física, pode custar bem menos, envolver uma parcela maior dos trabalhadores com rápida apuração e auditoria. A democracia ganha, e com ela o sindicato e os seus filiados.

Podemos dizer que hoje os sindicatos são mais necessários e insubstituíveis que nunca. Sua ação depende, desde sempre, de mobilização, vontade e uma política participativa. A tecnologia não substitui nada disso, mas é um meio essencial para que a ação sindical, nesse momento, atinja com maior alcance os trabalhadores representados e que seja mais do nunca vista por eles como a expressão de sua vontade.

Jean Michel Bouchara. É formado em Direito pela USP, e trabalha desde os anos de 1980 com TI, principalmente em desenvolvimento e infraestrutura. Defensor do uso de software livre, atuou
em software-houses e em bancos. Hoje é sócio da Completo Tecnologia e da Pandora Informática, empresas que atuam na informatização de sindicatos.
1. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), e suas entidades filiadas, deram ampla cobertura ao movimento em suas redes sociais, dando apoio e contribuindo com o debate na sociedade.
2. O termo “pelego”, no jargão sindical, se refere ao dirigente que media (sem confronto) a relação
entre os(as) trabalhdores (as) e as Empresas. Faz alusão ao objeto utilizado pelos cavaleiros, colocados sob a sela, para tornar a cavalgada mais confortável.
3. http://fepesp.org.br/artigo/a-tecnologia-e-o-renascimento-dos-sindicatos/
4. http://www.dmtemdebate.com.br/eua-a-geracao-millennial-renova-os-sindicatos/
Essa artigo faz parte da coletânea “A Era Digital e o Trabalho Bancário” realizado pelo sindicato dos Bancários do ABC – link: https://www.bancariosabc.org.br/images/PDF_diversos/livro-qrcode.pdf